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terça-feira, dezembro 19, 2006

Stress de época (cont.)


«Nicolau?» Nicolau ergueu lentamente os olhos. A Morte estava de pé á sua frente, com a velha foice na mão, impassível, olhando para ele do seu metro e cinquenta e dois de altura. Como era pequena. Nicolau já quase não se recordava de como era pequena. Uma figura que impressionava. Mas Nicolau não estava surpreendido, conhecia bem a Morte, esperava-a. «Outra vez os ratos, Nicolau?» disse a Morte num absoluto tom neutro. Nicolau torceu um sorriso para não ter de responder. Apontou uma cadeira. A Morte sentou-se e estendeu a foice em cima da mesa, num gesto que Nicolau já esperava. Ficaram os dois em silêncio. Nicolau parecia calmo. A Morte sentia essa tranquilidade. Talvez nada precisasse ser dito. Nicolau, que não queria adiar mais o assunto entre eles, olhou para a foice e pegou nela. Levantou-a no ar com as duas mãos, espreitou pelo cabo, bateu com ele várias vezes no chão, sacudiu-a violentamente e voltou a colocá-la em cima da mesa. «Tens aí uma foice para a vida!» , disse ele. A Morte, que se tinha mantido indiferente á demonstração, voltou a atenção para a foice. Passou levemente a mão por ela, devagar, primeiro pela lâmina, avançando ao longo do gume cadáver, e depois pelo cabo, tocando a madeira tantas vezes marcada pela vida. Como podia ele dizer aquilo? Então não via o desgaste do instrumento? «Sabes ao que venho, Nicolau», afirmou a Morte, «se leste as minhas cartas, sabes que preciso de uma foice nova.» «Sim», respondeu ele «mas como podes ver, essa ainda me parece boa.» A Morte endireitou-se na cadeira. Nicolau levantou prontamente uma mão «Sei o que vais dizer», interrompeu ele, «mas apenas prometi olhar para a foice e ver em que condições estava. Como viste, foi o que fiz. Como compreendes, trata-se de um artigo muito raro, não é própriamente um DVD dos Gato Fedorento, e não podes, ano após ano, insistir em pedir uma nova pelo Natal. Não é algo que se descubra de um dia para o outro. Para um artefacto deste género é necessário criar equipas, treiná-las em foices, colocá-las no terreno, etc. Tudo isto implica enormes gastos de tempo e recursos, coisa que infelizmente não possuo. Compreendo que te sintas insatisfeita, e até colocada de parte, talvez, mas a verdade é que a conjuntura não é a melhor e não tenho como satisfazer o teu pedido.» Nicolau fez uma pausa. Não estava a mentir. Olhou novamente para a foice, desta vez com mais atenção «Ainda assim, concedo que não está estimada», disse ele, «talvez necessite de alguma manutenção, como todos os aparelhos.» A Morte olhava para ele e via-o mexer a boca. Nicolau dizia qualquer coisa, talvez sobre a foice, já que apontava várias vezes nessa direcção, mas falava de forma tão arrastada e tão distorcida que ela não conseguia percebê-lo. Talvez fosse alguma língua morta. «Necessito de uma foice nova, Nicolau.», repetiu. Nicolau encolheu os ombros, agastado. «A colheita não tem sido nada satisfatória», continuou ela, «as últimas semanas têm sido particularmente negras. O máximo que tenho obtido são comas, comas profundos, no limite, se fizer uma segunda passagem. Ora isso, como sabes, principalmente nos comas profundos, são estados que podem durar anos; entretanto tenho números a apresentar, tenho objectivos a cumprir, tenho prazos, tenho calendários, tenho gráficos, enfim, tenho toda uma vasta e complexa carteira de vida que é necessário equilibrar. Preciso, portanto, com urgência, que me seja fornecido material fiável.» Nicolau ouviu tudo aquilo com muita atenção. Sempre pensara que a foice era para uso recreativo, mas agora o discurso da Morte fazia-o ver as coisas de outra perespectiva. «Desconhecia tudo isso», começou ele por dizer «tinha idéia que querias a foice para fins lúdicos. Pelo que vejo, enganei-me. Parece-me afinal que se trata apenas de uma questão laboral, e, nesse caso, devias saber que não é correcto dirigires-me tais pedidos. Como sabes, só atendo particulares.» Nicolau levantou então um braço e pediu o Vodka. A Morte olhava-o muda pelo capuz. Ficou ali um bocado, a vê-lo sempre bochechar antes de engolir. Depois levantou-se da cadeira e, muito triste, foi-se embora sem dizer nada.

posted by: João @ 17:40

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quarta-feira, dezembro 13, 2006

Stress de época


Nicolau bebia sozinho. Estava sentado a uma mesa, afundado na cadeira, numa posição que, com o hábito, o levara a ter problemas na coluna. Olhava para o fundo do copo com atenção, segurando-o ao nível dos olhos, pela base, e fazendo-o oscilar lentamente á volta desta. Lá dentro estava uma gota. Uma gota de vinho que, apesar do seu tamanho, o desafiava abertamente a bebê-la. Uma gota que era tudo o que restava de uma geração de uvas. Uma única gota. E contudo, a esta pequena gota, a esta pequena e insignificante gota, esse património não lhe pesava. Ao invés, aceitava essa herança; encarnava o espírito da colheita; recusava deixar-se beber. Mas Nicolau não pensava assim. Colheita é colheita, e, nesse caso, é para se beber até á última gota. Já tinha inclinado o copo, tentando fazê-la escorregar em direcção ao rebordo. Fê-lo com muito cuidado. Era muito pequena e podia perder a coesão. Mas á medida que descia demoradamente pela parede do copo, ia deixando um rasto. Uma cauda de vinho unia a gota á base. Nicolau percebeu que esse vinho era a própria gota. Avançava, mas desgastava-se ao fazê-lo. Definhava, morrendo lentamente. Nunca conseguiria chegar ao rebordo. E mesmo que conseguisse, reparava nisso agora, este é ligeiramente saliente, o que a faria espalhar-se antes de conseguir trepá-lo. Teria de encontrar outra solução. Ainda pensou deitar água no copo, apenas um pouco, só o suficiente para diluir a gota e o liquido adquirir uma leve tonalidade a vinho. Isso seria sinal que, apesar de desaglomerada, ainda existia, manifestando essa presença através da cor. Mas utilizar água para beber vinho, apesar de ter a sua piada, não seria uma verdadeira vitória. Teria sempre de recorrer a um elemento estranho. Por enquanto limitava-se apenas a rodar o copo, impelindo a gota a andar em circulos pela base. Forçava-a neste movimento, obrigando-a a andar á volta, como um rato numa roda, percorrendo sempre o mesmo caminho. Castigava-a assim pela sua fragilidade. E, no entanto, revia-se nesta gota. Via imagens de si próprio a percorrer o mundo, voltando sempre ao ponto de partida, todos os Dezembros, ano após ano. Também ele não conseguia escapar á rotina. A única diferença era que, no seu caso, o tempo entre circulos demorava doze meses. Revia-se na gota e isso amedrontava-o. Uma angústia com origem no seu mau vinho. Nicolau renunciou então á gota, colocando o copo em cima da mesa. Pediria que lhe trouxessem Vodka. Isso ao menos não o deixaria tão deprimido.

posted by: João @ 19:33

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sábado, dezembro 09, 2006

Absolutamente vazio


Os posts andam um dia atrasados. Reparei nisso agora. O último diz que é quinta-feira, mas eu acabei de o escrever ontem. E ontem foi sexta-feira. Isto é muito estranho. Olha, que se lixe! Faz de conta que não fui eu.

Mas e se fica registado no sistema? Pronto. Só faltava esta. Eu sabia. Sempre disse que ia arranjar um problema com o blog. Era só uma questão de tempo. Nunca houve aqui bom ambiente. Uma pessoa aqui não pode dizer nada. Não pode falar de nada. Há pouco tempo sugeri falar-se nos critérios de escolha para os júris do ICAM, por exemplo.

«O quê??? És doido??? Vaginas! Vaginas de silicone!!!»

É isto. Uma pessoa enlouquece. Não há um tema interessante. Não se consegue pegar em nada por lado nenhum. Não existe nada. Muitas vezes procuro refúgio na casa de banho. É como um jardim secreto. Um jardim só meu. Um jardim onde a minha cadela pode cagar á vontade.

posted by: João @ 10:20

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quinta-feira, dezembro 07, 2006

Testes em Amsterdão (cont.)


Perdi-me muitas vezes em Amsterdão. É muito fácil. Muitas ruas estreitinhas, muitos becos apertados, muitos canais de referência enganosa. Não percebo porque deixam as pessoas fumar droga aqui. Sou obrigado a abrir o mapa vezes sem conta, apesar de já conseguir sair da pensão sem ele. De tanto abrir e fechar, começa a desfazer-se nas dobras. Espero que aguente. Só tenho este. Se ficar sem ele não tenho como voltar ao quarto. Ou encontrar uma loja de mapas. O que não impede que encontre vaginas de silicone. Nisso há que dar mérito á cultura holandesa.

Entro em várias sexshop. Percebo agora que existe muita coisa que desconheço no mundo. Vejo uma bola, talvez do tamanho de uma bola de praia, daquelas de encher, mas de material mais resistente. Mais ou menos no topo da bola existe um orificío, uma abertura em forma de vagina, com lábios vaginais salientes e alguns pêlos. Ignoro se são humanos. Isso não lhe retira mérito. Fico parado. O génio inventivo do Homem é uma coisa extraordinária. Estou tentado a colocar dois dedos na entrada, por curiosidade. Ainda levanto a cabeça para ver se está alguém a olhar, mas sinto-me constrangido. Dou mais uma volta pela loja e passo lá outra vez antes de sair. Uma casal de velhotes está agora junto á bola. Ele tem uma mão enfiada até ao relógio e diz qualquer coisa á mulher. Não consigo perceber o que é. Parece que a repreende.

Depois de esgotar vários quarteirões começo a aperceber-me de um padrão nas vaginas de silicone. As mais baratas são sempre a vinte e cinco euros. É precisamente a quantia que tinha estipulado gastar. E como já conheço bem a oferta não demoro muito tempo a escolher. Entro numa loja e agarro uma em que já andava de olho. Pego nela e vou ao balcão pagar. Não está ninguém a atender. Enquanto espero reparo num grande placar cheio de piercings. Afinal não é nenhum placar. É o senhor da loja. Pergunta-me o que desejo e eu coloco a vagina em cima do balcão. Ele pergunta «You want some "lub", with that?» E agora? Não sabia que era preciso lubrificante. Mais dinheiro. Digo que não. «No??», diz ele. Digo-lhe que não preciso. Mais tarde vou lamenter este erro. Ele assenta com a cabeça; depois pergunta «You will need a bag or you want to try it right know...?» Tenho vontade de dizer que nem uma coisa nem outra, mas que posso levá-la já colocada. Infelizmente estou muito nervoso, não consigo responder á altura. Esboço um sorriso muito forçado «A bag, please.» Quando saio da loja ainda o oiço dizer, «Have fun!»

Depois de uns meses de testes, chego a esta conclusão: as vaginas de vinte e cinco euros revelam-se insuficientes. Talvez sejam úteis, durante uns tempos, como complemento ao Sábado. Mas não para uma actividade diária. No entanto são boas para quem quiser começar.

posted by: João @ 15:38

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quarta-feira, dezembro 06, 2006

Testes em Amsterdão


Em Agosto estive três dias em Amsterdão. A primeira vez em Amsterdão. Os canais de Amsterdão. As bicicletas de Amsterdão. Uma pessoa vê-se moralmente obrigada a adquirir uma vagina de silicone.

Decido comprar uma no segundo dia. No segundo dia a meio da tarde tenho a cultura despachada. Museu Van Gogh e Casa de Anne Frank. Pronto. A cultura holandesa já não representa qualquer mistério. Posso debater temas. Tenho uma serigrafia e tudo. Também tenho o resto da tarde para um reconhecimento, ainda que muito superficial, da oferta para vaginas de silicone. Apercebo-me que são caras. Já tinha reparado que em Amsterdão tudo é caro. Até os bens de primeira necessidade. É escandaloso o que me chegaram a pedir por uma vagina. Por isso janto o pão e as cavalas no quarto da pensão e faço contas. Preciso de ser equilibrado nos gastos. Tenho de pensar bem antes de gastar o que quer que seja. Tenho de fazer perguntas a mim próprio.

Qual é o interesse de uma vagina de silicone?

- Hein?! Quem é que disse isso?? Está aí alguém??

Tenho de me acalmar. Se calhar foi má idéia ter fumado aquilo durante a tarde toda. Tenho de fazer contas. Preciso manter o equilíbrio.

Qual é o uso que posso dar a uma vagina de silicone? Será que preciso mesmo disso?
Preciso. Testes têm de ser realizados.

Testes. Que tipo de testes?
Testes.

Mas que tipo?
Normal.

Mas qual a natureza? Preciso de saber. Para comprar preciso de saber.
Testes exaustivos. É como um controlo de qualidade. Têm como finalidade averiguar se o produto pode proporcionar o resto de uma estadia agradável. Além disso é necessário saber se existem perespectivas de mais alguns anos felizes. O produto é confortável? Resiste ao uso frequente? É lavável? São precisos testes...

Perante este raciocínio, decido comprar uma. Estabeleço como limite vinte e cinco euros. Cinco contos. Cinco contos por uma vagina de silicone. Congratulo-me por mais uma decisão acertada. Por este andar o dinheiro vai chegar-me até ao fim.

posted by: João @ 12:16

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segunda-feira, dezembro 04, 2006

Maldito cobertor!


Aconteceu o que já temia. Possívelmente vou ser obrigado a falar novamente á Maria. É minha vizinha.

Já não lhe falo há uns anos. É uma fanática da igreja. Vai religiosamente á missa faça chuva, sol ou vento. Todos os dias. Primavera, Verão, Outono e Inverno. A terra pode tremer, edifícios caírem; cadáveres, centenas entre os destroços, ainda frescos, ela avança, sempre determinada, sem se deter pelos cães que farejam sobreviventes, sacudindo a mão pequenina que pede água, porque a missa é ás sete, e já só faltam cinco minutos.

Certa vez marcou uma excursão a Fátima. Na altura houve qualquer problema, ela não conseguiu apanhar o autocarro, ou não pode ir por qualquer razão, já não me lembro.

- SOU CULPADA!! SOU CULPADA!!

- Então... Mas acalme-se...

- NÃO!! NÃO!! SOU CULPADA!!

E as pessoas á volta dela. E ela em lágimas. Batia no peito, com as chaves na mão. Aquilo devia doer-lhe.

- CUL-PA-DA!! CUL-PA-DA!!

- Mas vai ver que isso...

- DE JOELHOS!! DE JOELHOS ATÉ ROMA!!

- Então, Maria... Pronto...

- ATÉ ROMA!! IR E VIR!! VINTE VEZES!!

Quando os meus tios morreram andou semanas a falar-me numa estátua de Fátima que eles tinham no quarto. Levou-a por dez euros. "MINHA SANTINHA! MINHA LINDA! MINHA LINDA!" Quando tentou vendê-la a uma das melhores amigas por dez vezes o preço, achei piada. Não foi por isso que lhe deixei de falar.

Mas agora não falávamos. E da minha parte não existia nenhum desconforto nisso. Mesmo que nos cruzássemos nas escadas, para mim era natural não lhe falar como não segurar a porta da rua para ela entrar ou sair. Sentia-me feliz com esta relação.

Só que há duas semanas chego do Jumbo carregado de sacos e tive de os pousar para abrir a porta do prédio. Quando agarrei neles outra vez devo ter falhado uma asa, porque se não fosse ela, que vinha a entrar naquele momento, a avisar-me, eu tinha espatifado com a garrafa do vinho no chão. Então tive de agradecer-lhe, amaldiçoando a minha total estúpidez. A este nível, erros destes pagam-se caro. Isto há duas semanas.

Esta semana. Esta semana, foi muito pior. Tocou-me á porta de casa. Era o cobertor que tinha caído da corda. Estava lá em baixo. Era só para avisar. Agora tinha de ir, eram quase sete horas.

Estou numa posição muito complicada, muito complicada. Se Nossa Senhora me ajudar, vou lá acender uma velinha.

posted by: João @ 17:03

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domingo, dezembro 03, 2006

O amigo que veio do frio


Não venho cá há cinco dias.

Sofri algum acidente horrível? Tenho agora cotos em vez de braços? Sou obrigado a escrever com a ponta da língua no teclado e por isso demoro mais tempo? Não.

Sofri algum acidente horrível? Tenho agora cotos em vez de braços? Sou obrigado a escrever com um lápis na boca e por isso demoro mais tempo? Não.

Não me consigo sentar? Não estou a ter cuidado com a alimentação e ando novamente a abusar do picante? É o hemorroidal? Não... embora isso...

Este mês tenho um emigrante cá em casa. Chegou a semana passada de Munique. Um amigo. Uma pessoa com curiosidade e inteligência superior. É delicioso ouvi-lo falar. Infelizmente fartamo-nos de meter vinho ao bucho e eu perco metade da informação.

Agora vou a Palmela com ele. Vamos buscar um garrafão. Fica mais barato. Depois voltamos para almoçar. Um cozido.

Tenho de... ando estoirado...

posted by: João @ 11:28

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