terça-feira, janeiro 09, 2007
A Idade do Gelo
Amália ainda não sabia que tinha os olhos fechados. Via sombras no escuro, ou pelo menos era isso que pareciam. Eram muito estranhas. Voavam de um lado para o outro e, quando chocavam umas com as outras, fundiam-se numa maior e mais negra. Essa colisão também muitas vezes soltava quatro ou cinco mais pequenas, que passeavam por ali até serem absorvidas pelas outras. Pareciam manchas de mercúrio e estavam por todo o lado. Que substância admirável! O que seriam? Amália nunca ouvira falar de tal coisa. Tinha televisão por cabo á muitos anos, estava convicta de nunca ter visto nenhum documentário sobre isto. Seriam de outro planeta? Seria ela a primeira pessoa a vê-las? Matéria extraterrestre que se comporta como sombras de mercúrio? Sim, isso parecia-lhe possível. Nesse caso, havia que aproveitar este extraordinário golpe de sorte! Que direitos teria ela sobre a descoberta? Ou melhor, que direitos teria sobre as suas aplicações comerciais? Uma questão para os advogados, sem dúvida. Mas primeiro tinha de averiguar as potencialidades do produto. Podia não se mostrar rentável. Seriam necessários testes. Sabia como eram importantes. Conheceu muitas pessoas que destruíram uma carreira brilhante por não realizarem testes. Colocaria os seus cientistas nisto. Conheceu muitas pessoas que destruíram uma carreira brilhante por não colocarem os cientistas nestas coisas. Mas seria necessário que trabalhassem depressa. E no mais absoluto segredo! Uma situação que requeria o rapto das suas famílias. Conheceu muitas pessoas que destruíram uma carreira brilhante por não raptarem as famílias dos cientistas. Assim que o fizesse, estes logo descobririam algo sobre as sombras. Infelizmente, devido ao volume de negócios deste ano, alguns dos seus filhos começavam a ficar sem dedos. Provavelmente teria de se ficar pela intimidação. Isso retirava algum prazer ao processo, mas enfim, uma consequência do agregado familiar não acompanhar o crescimento das empresas. Teria de rectificar o facto. Amália pensava de maneira fria. A profissão tornara-a uma mulher fria. Tão fria que isso começava agora a afectá-la fisicamente. Não só a ela, também ao ambiente á volta. Em consequência, o ar tornou-se gélido. As sombras começaram, uma a seguir á outra, a abrandar o seu movimento, até que pararam por completo. Depois começaram muito lentamente a cristalizar, transformando-se em paredes, móveis, roupas, fotografias, e numa série de objectos familiares, permitindo assim Amália ver que estava no seu quarto. Era de noite e ainda estava escuro. O quarto estava gelado. Tentou puxar um cobertor e não conseguiu. Não movia o braço. Nenhum deles. As pernas também não se mexiam. O que era isto? Nenhuma parte do corpo respondia. Tentou falar. Só quando não conseguiu isso, é que percebeu que também tinha os olhos fechados. Mas se tinha os olhos fechados, como é que conseguia ver á volta? Então Amália tomou consciência que não via. Apenas sentia que via. E isso só podia significar uma coisa. Tinha acordado, outra vez, com paralisia do sono. Cabeças rolariam no departamento médico, isso era certo! Já os tinha avisado! Amália não admitia brincadeiras com a sua saúde. Conheceu muitas pessoas que destruíram uma carreira brilhante por permitirem brincadeiras com a sua saúde. Forçou a respiração e, ao fim de algum tempo, libertou-se daquele casulo. Estava agora acordada de vez, não tinha dúvidas. Continuava apenas com frio. Quis tapar-se, e, novamente, não foi capaz. Ainda ficou ali um bocado a tentar perceber porquê. Conseguiu-o pouco antes de morrer. Estava congelada no interior de um cubo de gelo que se tinha formado á sua volta.
A profissão tornara-a numa mulher fria.
posted by: João @ 14:03
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4 Comments:
BRILHANTE MEU AMIGO
Abraço
China
Já não sei o que hei-de dizer mais sobre os teus textos mas és um talento desperdiçado e incompreendido pela sociedade
China
A sociedade devia permitir que os subsídios de desemprego pudessem ser de 25 anos para as pessoas que tenham Blog's e que tenham boas criticas aos seus textos.
Portanto meu amigo, eu vou tentar que isso aconteça
Abraço China
China, meu leal amigo...! A minha dívida de gratidão para contigo é enorme...
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